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Dramaturgia em diálogo: conexões entre França, Brasil e Japão

O autor de "Eu, Ota, rio de Hiroshima" responde com exclusividade para o Blog da Temporal questões sobre dramaturgia, sobre sua relação com o teatro francês e o de fora da França, inclusive o brasileiro, além de eleger suas principais inspirações para a escrita das obras

Para inaugurar o Blog da Temporal em 2021, convidamos o autor Jean-Paul Alègre para responder algumas curiosidades que nós, como equipe, tínhamos sobre sua prática. 

Na sequência, confira nossa conversa com o autor:

Temporal: Poderia nos contar um pouco sobre os motivos pelos quais, como escritor, você optou pela dramaturgia? Sendo esta sua primeira publicação no Brasil, gostaríamos de saber um pouco mais sobre sua trajetória, especialmente sua passagem pelas associações e grupos teatrais, inclusive os grupos amadores, com os quais você mantém uma relação e que encenam com frequência suas peças.

Jean-Paul Alègre: Como eu sempre repito, escolhi o teatro por uma razão pura e simples: o teatro é o lugar em que não podemos prescindir do outro! Em uma sociedade que nos incita, cada vez mais, a “consumir” cultura de maneira individual (através do iPhone, do tablet, do computador etc.), o teatro continua como o local do contato, de se estar próximo. Em uma sala de espetáculo, não escutamos apenas os atores e as atrizes, mas ouvimos a própria sala. O riso é eficaz apenas quando ele comunica algo. Uma emoção se torna maior quando ela é compartilhada. Foi a partir dessas descobertas que eu decidi dedicar minha vida ao teatro, como autor ou como um escolhido entre os autores. Eu tive a sorte de escrever textos que alcançaram sucesso muito rapidamente (atenção: sucesso relativo, nada a ver com as estrelas de cinema ou de televisão) e que circulam um pouco por toda a parte. Isso se deu, no início, graças ao meu editor, das edições L’Avant-Scène Thêátre, casa editorial com a qual eu mantenho uma relação de fidelidade absoluta (até o momento, já são quarenta títulos publicados!).

Como escritor, escrevo apenas teatro. E sou um apaixonado pela vida teatral. Patrocino dezenas de festivais na França, na Europa, no Marrocos, e em outros países. Sempre que posso, os frequento com prazer e disposição. Passo horas discutindo, em companhia de minha esposa, que gerencia minha carreira e compartilha dessa paixão comigo, com as companhias de teatro, incentivando e organizando debates, colóquios etc. Eu adoro fazer esse tipo de trabalho porque acredito, de verdade, que é a partir do confronto de ideias que nasce e se desenvolve a fraternidade. Às vezes, acontece de encontrar pessoas que não gostam das minhas peças. Como geralmente essas pessoas são gentis, elas são muito cuidadosas. Mas o fato é que nós, autores, sentimos esse tipo de reação. Nesses casos, eu as empurro ao limite e elas ficam muito surpresas ao perceber que fazer isso me convém perfeitamente. E é verdade! Eu sempre digo a elas que é justamente por isso que eu escrevo teatro. Para que um casal, que costuma se entender muito bem na maioria dos assuntos, saia de uma de minhas peças com um diálogo divergente do tipo: “Eu adorei! Foi genial”; enquanto o outro responde: “Sério? Eu não consegui me conectar a essa história de jeito nenhum”. Perfeito para mim. Os dois têm razão.

 

T: Em Eu, Ota, rio de Hiroshima, você apresenta o ponto de vista de dois jovens sobre viver o dia a dia de um país em guerra. Para você, qual a importância de os jovens se verem representados nos palcos?

J.P.A: Essa é uma excelente questão! Na França, nós temos um prêmio importante que todos os anos reconhece uma peça de teatro pelas mãos de jovens leitores. Trata-se do Prêmio “Ado” do Teatro Contemporâneo. Entre todas as peças publicadas em um ano, seis são selecionadas pelos organizadores, e, na sequência, são submetidas à leitura de mais ou menos 350 estudantes, do ensino fundamental ao médio, em suas respectivas escolas. Os alunos trabalham o texto durante todo o ano letivo seguinte com seus professores e, ao fim do período, reúnem-se para dar o seu voto secreto sob a supervisão de um oficial de justiça. Dessa forma, é apontado o texto favorito entre os alunos.

Em 2017, me foi anunciado que Eu, Ota, rio de Hiroshima havia sido eleito. Ao que fiquei pasmo, porque eu pensava que a peça não se direcionava aos jovens leitores. Depois do anúncio, o autor responsável pelo título vencedor se encontra com os estudantes que votaram a favor de seu texto na ocasião de entrega do prêmio.

Assim, quando chegou minha oportunidade de ir ao encontro dos estudantes, eu não pude deixar de perguntar a eles o porquê do voto justamente em minha peça. E a resposta de muitos foi a seguinte: “Nós nos vimos representados pelos dois jovens personagens de sua peça. Nós estávamos no centro da tragédia”. A resposta desses jovens me emocionou particularmente, e eu acredito que ela corresponde em cheio a esta questão que vocês me colocam.

 

T: Você disse que ao escrever Eu, Ota, rio de Hiroshima não teve a intenção de se dirigir a um público específico, como os jovens, ou ainda integrantes de grupos teatrais (profissionais ou amadores), estudantes, etc. Mas, qual papel o pensamento sobre o público ou o espectador desempenha na escrita de suas peças?

J.P.A: No momento em que escrevo uma peça, eu não penso em um público-leitor em particular. Eu sou apaixonado pelo teatro, pelo ato teatral, e eu me considero um artesão cuja principal preocupação é a de moldar uma boa ferramenta, que seja eficaz para os diretores e as equipes que vão, mais tarde, se apropriar dos meus textos.

Meu segundo problema é o de propiciar aos espectadores um espetáculo. Eu não sou nem professor, nem historiador: meu papel, como dramaturgo, é o de propor uma ou duas horas de distração, de evasão às pessoas que vêm assistir aos meus textos. Mesmo que seja sobre um assunto terrível, como o de Eu, Ota, rio de Hiroshima. É preciso que haja, ali, uma dramaturgia, um suspense, uma história. É ainda mais difícil quando o assunto é conhecido de antemão, e todo mundo está a par de seu desfecho. Além disso, como tenho a incrível sorte de ser montado em um grande número de países, de culturas diferentes, eu não me coloco a questão da futura recepção do texto.

Dou a vocês um exemplo: há quinze dias, assisti a uma apresentação de minha peça Deux tickets pour le Paradis [Dois ingressos para o Paraíso] no Japão, em Tóquio, e, depois, na cidade de Lomé, no Togo. É evidente que a recepção da peça foi totalmente diferente nesses dois países, que são em tudo opostos. Da mesma maneira, como já posso me considerar experiente, agora que minha carreira já é longa, eu me peguei olhando para uma peça, que se entende como destinada ao público jovem (que hoje eu, sem dúvidas, não escreveria da mesma maneira), sob um viés totalmente novo, diferente. Esse foi também o caso recente de minha experiência na Tunísia, onde eu assisti a uma peça que já não é mais montada na França, o texto On a volé la lune [Roubaram-nos a lua]. Diante da situação política em que a Tunísia se encontrava à época da montagem, a peça voltou a ser estranhamente atual, enquanto eu mesmo a considerava ultrapassada. É esta a magia do teatro: quem verdadeiramente faz a peça, ao fim e ao cabo, é o espectador!

 

T: Ainda sobre recepção, muitas de suas peças são lidas e encenadas por grupos de crianças e jovens e por grupos amadores. Como você vê a recepção de sua obra entre o público infantil e juvenil? E como você avalia a cena teatral juvenil francesa? Você teria condições de compará-la à cena de outros países com os quais você se relaciona, como o Japão por exemplo?

J.P.A: Sim, de fato minhas peças são com frequência encenadas por grupos teatrais formados por jovens, ainda que elas não se direcionem a este público em específico. E isso é muito gratificante para um autor. É também verdade que, ao mesmo tempo, eu sou um dos autores mais montados pelos grupos amadores. Na França, este domínio, o do teatro amador, é muito vivo e conta com milhares de companhias e com dezenas de milhares de atores e atrizes. Não sei muito bem dizer porque esses artistas se encontram em meus textos dessa maneira. O que sei é que eu os amo, vou assistir a eles sempre que é possível, e me considero um grande admirador de seus trabalhos. De qualquer forma, mais uma vez, nenhum dos meus textos é escrito especificamente para eles.

Considero que os grupos amadores fazem teatro da mesma forma que os profissionais – evidentemente, com implicações financeiras distintas. No mais, eu sempre digo que não há um espectador amador ou um espectador profissional. O que existe é apenas o teatro! É a magia – vou usar esse termo –, e é essa magia dessa estranha cerimônia que me fascina. No teatro, nós podemos vibrar como em nenhum outro lugar, assim como podemos nos entediar e cair no sono. Mas, ao menos, adormecemos coletivamente! É essa noção de coletivo, de se estar junto, deste público que é um bloco único composto de diversos indivíduos, que faz com que o teatro nos fale de uma maneira tão intensa.

  

T: Sabendo das inúmeras restrições de acesso à cultura no Brasil, que conselho você daria para estimular os jovens a frequentarem o teatro?

J.P.A: O Brasil é um grande país. Um país de ferro e de fogo, que eu considero como eminentemente lírico. Eu sou apaixonado por esportes – meu filho é um grande campeão de um esporte tradicional de nossa região: a pelota basca –, e o Brasil, a meu ver, corresponde à imagem de seu futebol: artístico, surpreendente, inclassificável, capaz de trajetórias sublimes e terríveis depressões! O Brasil deu à humanidade artistas incríveis, em todos os campos, na música, teatro, literatura, cinema... Não creio que caiba a mim julgar sua situação política atual, até porque, em todo caso, me considero um convidado no país, por meio da Temporal, casa editorial da qual muito me orgulho. Um amigo, segundo minhas convicções, não julga a casa que lhe abriu as portas.

No entanto, segundo o que vocês me propõem a partir desta questão, é possível, de minha parte, dar alguns conselhos. Aos jovens brasileiros e brasileiras, eu diria o seguinte: aprecie o teatro e, mais ainda, o espetáculo ao vivo; frequente-o, pratique-o. Porque, assim como o esporte, o teatro permitirá que você se desenvolva plenamente, e que você descubra alguns segredos maravilhosos que vivem dentro de si. O teatro é o barômetro da democracia: quando uma sociedade vai bem, seu teatro vai bem.

  

T: O que você espera de uma eventual montagem brasileira de Eu, Ota, rio de Hiroshima?

J.P.A: Eu estou muito feliz, de antemão, de ver o texto publicado no Brasil. Nós temos uma forte tendência de pensar que uma peça não existe de verdade até que ela seja encenada diante de um público. No entanto, uma peça é, a princípio, uma obra literária, e eu reivindico fortemente este lugar ao texto teatral – creio que, à vista do catálogo da editora, a Temporal mantém essa mesma convicção em sua linha de publicações. Na sequência, é claro, funciona como uma boa refeição: a preparação é essencial, é preciso escolher bons ingredientes, harmonizar as cores dos pratos e dos talheres, escolher bem os vinhos... mas tudo isso só faz sentido no momento da degustação, que fazemos juntos, lado a lado, cara a cara! O teatro é também um caso de estar com o outro lado a lado, cara a cara, não é mesmo? Eu teria então muita curiosidade de ver como um grupo brasileiro se apropriaria deste texto, se de fato a publicação vier a resultar em uma montagem.

Até o momento, como a peça é recente, eu assisti evidentemente à versão japonesa (suntuosa!), a versão suíça (muito bem realizada, com uma cenografia impecável) e a uma das versões francesas (muito bela e afetuosa), em meio a outras tantas que também aconteceram no país. Felizmente, todas essas montagens eram diferentes entre si. Agora, como será que a personalidade brasileira vai se transpor ao meu texto? Em toda representação teatral, há o peso da cultura característica da sociedade que a acolhe. E mais, como o discurso dessa língua magnífica que é o português, que eu percebo como uma língua cantada e ao mesmo tempo gutural (como é justamente a japonesa), vai se misturar às minhas palavras? E por fim há ainda a tradução. Sobre ela, mostrei as provas de Eu, Ota, rio de Hiroshima a que tive acesso a amigos que falam muito bem o português, e todos me disseram que a tradução é excelente, fiel e ao mesmo tempo dotada de forte personalidade. Em todos os meus textos, sou particularmente sensível à musicalidade das palavras. Esse traço de minha escrita ficou ainda mais evidente quando escrevi o texto contado pelo rio Ota, que deveria ser fluido, deveria se regenerar, como a água que reconstitui nas margens de um rio. Se a tradução tiver sido bem-sucedida, como me afirmaram que foi, os atores e as atrizes se apropriarão do texto muito rapidamente.

 

T: É muito interessante saber que esta peça teve estreia nos palcos do Japão, país afetado diretamente pelo episódio que você conta, e não na Europa, como se poderia esperar. Além disso, muitos de seus textos são traduzidos e encenados por lá com certa frequência. Gostaríamos de saber um pouco mais sobre sua relação com o teatro internacional. Qual é sua relação com o Brasil, país que recebe um título inédito de sua autoria, e, mais especificamente, com o teatro brasileiro? O que você pensa a respeito da recepção europeia do teatro produzido aqui?

J.P.A: Não voltarei àquilo que eu disse acima sobre a minha percepção da cultura no Brasil. Em relação à percepção do teatro brasileiro na França, acontece, eu imagino, o mesmo que se passa com a percepção do teatro francês no Brasil. Quando um país tem uma literatura dominada por grandes romancistas, o teatro se reduz a alguns poucos autores. Nesse cenário, esquecemos com frequência em que medida a dramaturgia é múltipla, dotada de uma incrível riqueza. Esquecemos, como eu já disse anteriormente, que ela é parte essencial da própria literatura.

Por cerca de quinze anos, presidi a associação de autores dramáticos da França. E quantas batalhas eu travei nesse período para lembrar que o teatro não é apenas o espetáculo, a representação, mas seu nascimento é um texto!

Na pergunta, vocês evocam o Japão. Nesse país, os criadores são venerados, sejam eles marceneiros, especialistas em arranjos de flores, músicos ou escritores. Na Europa, ao contrário, nós vivemos sobretudo o culto ao intérprete, à atriz ou ao ator, estrelas que preenchem as salas de espetáculo. A meu ver, a pessoa a quem devemos verdadeiramente venerar é o espectador, aquele ou aquela que nos dá algumas horas de seu tempo e, portanto, de sua vida. Esse respeito ao público, que como em toda relação amorosa deve ser recíproco, é a base do ato teatral.

 

T: Os relatos dos personagens 1, 2, 3 e 4 são inspirados em depoimentos de pessoas reais ou são relatos criados a partir de sua pesquisa para a escrita da peça?

J.P.A: Os relatos contados por esses personagens são autênticos. Existem, claro, milhares de testemunhos sobre a catástrofe. Eu não li todos eles, longe disso, mas eu quis selecionar alguns, cada um de natureza bem diferente dos demais, para dar voz às vítimas.

Podemos dizer que a peça Eu, Ota, rio de Hiroshima se divide em dois universos: o da imaginação, que todo autor deve imprimir a seu texto – o rio que conta sua história e as crianças que vão uma em direção à outra de maneira implacável –, e o da realidade do acontecimento, à medida que o texto faz referência a um evento que, infelizmente, ocorreu. Nesta última categoria temos a discussão entre os presidentes estadunidenses e o conselheiro do governo para assuntos científicos, o discurso do coronel Tibbets aos homens de sua divisão militar antes do lançamento da bomba, e, por fim, os testemunhos dos habitantes da cidade, aos quais a pergunta faz alusão.

 

T: As temáticas inspiradas por eventos reais são recorrentes na sua obra. Por exemplo, você já abordou o episódio de uma epidemia que atinge a sociedade na peça La Maladie du sable. Diante do contato e das reflexões constantes sobre os acontecimentos cotidianos, quais são, na sua opinião, os reflexos da atual pandemia no teatro contemporâneo? E quais são as respostas que o teatro dará para o novo status quo?

J.P.A: Eu gosto muito de confrontar o campo da imaginação e o da realidade. La Maladie du sable [A doença da areia] e, mais recentemente, Tourbillon de la grande soif [Redemoinho da grande sede] falam dessas questões. É o papel do teatro: divertir e alertar. Os dois são compatíveis! Eu, Ota, rio de Hiroshima conta uma história fictícia – um rio que narra uma história, crianças que vão uma em direção à outra enquanto uma terrível bomba se precipita sobre elas –, mas, ao mesmo tempo, eu espero que os espectadores ou os leitores saiam do espetáculo ou terminem o texto reivindicando que evitemos que outro episódio como o lançamento de uma bomba atômica se reproduza outra vez na história.

O teatro, como sabemos, funciona como um espelho de nós mesmos. Mas não são todos que sabem se olhar através do espelho. Há muita subjetividade nesse ato. O teatro existe para nos ajudar a olhar melhor para nós mesmos, sem maquiagem – o que é uma pena numa arte que se utiliza extensivamente dela!

A pandemia atual é sinistra e destrutiva, sobretudo para as artes do espetáculo, porque ela condena justamente aquilo que constitui a sua especificidade: a proximidade, o contato, os abraços, a interação humana... O coronavírus exige o confinamento em nós mesmos, enquanto o teatro é nossa possibilidade de abertura aos outros!

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Jean-Paul Alègre é dramaturgo e escritor. Ainda nos anos 1970, o dramaturgo fundou a companhia Théâtre du Fil d’Ariane, para a qual escreveu suas primeiras peças. Entre 2006 e 2011, dirigiu um grupo francês de escritores associados ao teatro, que reúne mais de trezentos literatos do campo. Hoje, Alègre conta com mais de cinquenta títulos publicados na França e no exterior, muitos deles montados em quarenta países e traduzidos para 25 línguas, consagrando-se como um dos autores mais montado da França. A literatura de Jean-Paul Alègre é objeto de diversos estudos universitários e seus textos são frequentemente citados em livros acadêmicos e antologias.