No catálogo da Temporal, Bernhard assina Praça dos Heróis, peça de 1988, escrita um ano antes de sua morte, e lançada pela editora em 2020. No mesmo ano, a Editora da UFPR presenteou o público com mais uma peça inédita do autor em português brasileiro: O presidente, de 1975.
Nesta sátira sobre a sociedade e os jogos de poder, o dramaturgo insere os leitores nos bastidores da vida oficial de um presidente, de sua amante, de uma primeira-dama altiva e de seu capelão conselheiro. Nas palavras da tradutora e prefaciadora da edição, Ruth Bohunovsky, “Embora Bernhard nunca tenha sido um autor politicamente engajado no sentido mais estrito, esta é considerada a sua peça teatral mais política. O presidente trata do mundo dos poderosos, dos políticos e seu cinismo em relação ao povo, e do abismo social que marca a relação entre o governo e os governados”.
A seguir, confira um trecho da peça selecionado por nossa equipe e descubra mais sobre a obra de Thomas Bernhard.
*
Cena 1
[...]
Presidente
A política
é a arte mais alta minha filha
ela é mais alta que todas as outras artes juntas
as pessoas não veem
mas elas não para de mudar o mundo
Logo depois vem a arte da encenação
Atriz
E depois
Presidente
Depois vem a pintura
Rembrandt
Rubens
Delacroix
Atriz
E depois
Presidente
A poesia minha filha
a poesia
E a música
a música minha filha
Mas eu não tenho
competência nenhuma
para as artes
No meu caso
a melhor e maior arte
é a arte política
César
Napoleão
Metternich minha filha
(levanta o copo)
Metternich
a Metternich
(a atriz levanta o copo)
A Matternich
(bebem)
É preciso
ser prático e teórico minha filha
sempre e ao mesmo tempo
No meu caso
eu sem nenhuma dúvida deveria pertencer
a outra época
a um tempo
em que eu pudesse ter realizado
aquilo ao qual eu era destinado
no nosso tempo eu não consigo realizar
o que está na minha cabeça
Atriz
Você é um ditador
Presidente
Um ditador
um ditador
O país é muito pequeno pra mim
a nação é muito pequena pra mim
tudo é muito estreito e pequeno pra mim
e assim um potencial como o meu não sai do lugar
Tudo na minha cabeça
se atrofia
Atriz
Ditador
Presidente
Esse país não merece alguém como meu marido
minha esposa disse
para o embaixador mexicano
Eu gostaria de ter
nascido em outro país
e ter me tornado presidente de outro país
(bebe)
Mas agora
de repente
Os anarquistas minha filha
Ficar alerta
Eu corro risco de vida
todos correm risco de vida
Atriz
Risco de vida
Presidente
Porque eu soltei
as rédeas
A igreja
Os padres
A ralé
A gentalha minha filha
Por pouco o coronel não se salva
e eu sou a vítima
Muitas tentativas minha filha
de me eliminar
Mas antes de me eliminarem
muitos dos anarquistas também serão eliminados
Eliminados
eliminados
(seca o copo, se serve novamente)
A sociedade está literalmente gritando
para que um homem assim
ponha ordem
Ordem minha filha ordem
isso é tudo
nada além de ordem minha filha
dessa desordem descomunal
que está se propagando
e envenenando tudo
envenenando tudo
Pôr ordem
Por outro lado
Somos felizes
(beija-a no rosto)
de termos sossego agora
Aqui temos sossego
A costa atlântica
e a brisa da costa atlântica
(de repente)
Eles ainda não pegaram os terroristas
Que tipo de polícia é essa
Atriz
Cada vez mais atos terroristas
Presidente (em tom de pergunta)
Você está entendendo minha filha
isso é uma fatalidade
Que tipo de ministro do Interior é esse
E se os terroristas não forem presos até amanhã de manhã
presos minha filha presos
vou mandar trocar o ministro do Interior e o comandante da polícia
mandar trocar
trocar
Atriz
Trocar
Presidente
Trocar
trocar o governo inteiro
Outro governo
um governo novo
levanta o copo
(sugere que a Atriz levante o copo
ambos levantam o copo)
Por um fio minha filha
e eu não estaria agora em Estoril
O atentado é o motivo
pelo qual estou aqui
Você entrou em estado de choque
minha esposa disse
vá para Estoril
ela disse
E ela só disse isso
para que eu fosse embora
para que ela própria pudesse ir pras montanhas
com o açougueiro dela
Ou ela vai com o Capelão pras montanhas
Com o açougueiro
ou com o Capelão
mas pra mim tanto faz com quem ela vai pras montanhas
o importante é que estou com você em Estoril minha filha
(bebe)
Dois mil policiais apenas para proteger
a minha pessoa
E você minha filha
minha filha atriz
com o passaporte diplomático
e com a proteção explícita do Presidente
Depois de amanhã vamos para Sintra
com todas as pompas
vamos nos maravilhar
O jeito como eu dei um sermão
no garçom em Sintra no ano passado
um sermão
primeiro em francês
o que ele não entendeu
então em inglês
o que ele também não entendeu
por fim em português
De noite dormimos
minha mulher e eu
separados
há vinte anos
não deitamos juntos na mesma cama
ela pensa no açougueiro dela
às vezes no açougueiro
às vezes no Capelão
os dois passam pela cabeça dela de noite
e não se deixam fundir na cabeça dela
mas ela não pode ficar louca
nessas condições
E se alguma vez ela está comigo
na verdade está com o açougueiro
ou com o Capelão
Isso explica por que ela está cada vez mais nervosa
E os maus modos
com a criadagem
Ambição
Ódio
Medo
mais nada
Nos últimos tempos o cachorro também
estava alterado
então quando não suportava mais pensar
no açougueiro e no Capelão
ela fugia para o cachorro
então ela dizia dos dois amantes
do amante espiritual e do amante físico
o cachorro era tudo pra ela
Nessa idade minha filha
é um jogo perigoso com a perversão
mais ainda numa pessoa como a minha mulher
Agora tiraram o cachorro dela
Eu sempre
odiei aquele animal inútil
eu odeio vida inútil
Também não sou um entusiasta de animais
nem entusiasta de pessoas nem entusiasta de animais
Esses corpos animais
que já desaprenderam a latir
e ficam espalhados por aí apenas como objetos decorativos
que precisam ser alimentados
para nada
(grita)
O cachorro teve um ataque
Um ataque cardíaco
quando o primeiro tiro contra mim
acertou o coronel
que morreu na hora
e ele teve um ataque cardíaco
Duas vítimas inocentes
o coronel e o cachorro
(grita)
Ela correu para o Instituto Médico Legal
por causa do cachorro
nem notou o coronel
que estava do lado do cachorro
na mesa de dissecação
Aquele cheiro nojento
que sempre vinha do cachorro
O quarto está empestado de cheiro de cachorro
o palácio inteiro
do cheiro do cachorro
Esse mau cheiro
Pequeno e inútil
sem pedigree
essa raça nojenta
Tirada do canil
e levada ao palácio no carro presidencial
e durante dias durante semanas durante meses só o cachorro
O pessoal da cozinha foi importunado
para aprender a fazer a ração do cachorro
Um cachorro achado na rua minha filha
um cachorro achado na rua
reinando no palácio presidencial
Infernizando a vida do marido
mas mimando o cachorro
Não se abalou
com a morte do coronel
que todos nós vamos morrer é claro
mas o cachorro
Ela foi para o enterro do coronel a contragosto
na cabeça dela só estava a solenidade
do enterro do cachorro
cremar
ou enterrar
problema dela
Consciente
de ser deixada sozinha sob qualquer circunstância
com o tempo
ela foi se entregando totalmente
ao cachorro e ao dinheiro
E o Capelão ajudou
com uma filosofia absurda
Ele sempre sente necessidade
de falar dos seres vivos inocentes
da grandeza da mente e da tragédia
e ela fica repetindo o que ele fala
não entende nada do que ele diz
mas fica repetindo
o Capelão diz que o cachorro é uma vida inocente
ela repete
o Capelão diz que todos os homens são iguais
ela repete
o Capelão diz o termo grandeza da mente
ela repete
tudo que ele diz sobre o socialismo
ela repete
o que ele diz sobre religião
sobre filosofia
ciência
[...]
*
Trecho extraído de Thomas Bernhard, O presidente. Tradução de Ruth Bohunovski, Gisele Pacheco Eberspacher e Paulo Rogério Junior. Curitiba: Editora da UFPR, 2021, pp. 140-50.
No banner: Thomas Bernhard e Claus Peymann na polêmica estreia de Praça dos Heróis em 1988.