- teatro, tradução teatral

"Por que ler dramaturgia?", por Rubens Figueiredo

Pedimos que pesquisadores(as), dramaturgos(as), tradutores(as) e demais envolvidos(as) no universo teatral respondessem a uma pergunta que tanto nos inquieta desde o nascimento da Temporal e que ganha espaço especial, aqui, no Blog da editora: afinal, por que ler dramaturgia? Se o gênero não figura entre os preferidos do público brasileiro, não consta entre as categorias da maioria dos prêmios literários nem é destaque nas livrarias e na imprensa, além de, com frequência, não ser entendido como literatura, por que se interessar por ele? Para inauguras os trabalhos, o convidado a responder à questão é Rubens Figueiredo, consagrado tradutor do par russo-português, que, recentemente, verteu as peças de Tchékhov

por Rubens Figueiredo

Claro que peças são escritas para serem representadas num palco. Mas, afinal, se foram escritas, em algum momento terão de ser lidas. Ainda, se podem ser lidas e, depois, repetidas de memória em voz alta por atores, nada impede, também, que alguém as leia em silêncio, sem outra voz que não aquela que fala na mente do leitor. Ou seja, da mesma forma como se lê um livro.

Acontece que, em forma de livro, uma peça se resume quase que apenas às palavras dos personagens. Em volta dessas palavras escritas, não há nada além de nomes próprios e poucas indicações de lugar, de tempo e de alguns gestos. O contexto se vê reduzido ao essencial e, portanto, na leitura da peça em forma de livro, cabe somente às palavras dos personagens a tarefa de movimentar ideias e emoções capazes de manter de pé o conjunto da obra. Por sua vez, ao não ter outra coisa em que se apoiar, a leitura se concentra mais intensamente nas palavras dos personagens do que ocorre numa representação no palco, e todas as nuances e transições linguísticas acabam sendo percebidas e apreciadas com mais vagar pelo leitor.

Será que na fala real, na acústica das vozes altas e da dicção, por vezes, corrida de um ator, tais nuances terão tempo de respirar? Sem dúvida, mas, certamente, com outra respiração e com outro tempo. Parece claro que, no livro, o leitor exerce um controle mais amplo sobre o material da peça, sua atenção e seu pensamento se movimentam com mais liberdade, sua mente vai e vem, abre pausas para refletir ou distrair-se. O leitor olha para os lados, faz o pensamento subir e descer, enquanto os personagens o esperam, ali onde estavam, obedientes, sentados, as mãos sobre o cabo de um guarda-chuva e o queixo apoiado nas mãos, ou olhando atentos para a porta, batucando com os dedos no braço do sofá, na expectativa de que a visita, muito aguardada, entre na sala com suas passadas tímidas e tateantes, ou largas e firmes.

O que existe, o que inventamos, e mesmo o que vivemos, só nos alcança por via de mediações incontáveis e, não raro, incontroláveis. Tais mediações, ao mesmo tempo que nos trazem partes do mundo, trazem também partes de si mesmas. A mistura é inevitável e seus elementos tendem a ser indissociáveis. Assim, uma peça pode vir até nós por vários caminhos e nos entregará, também, traços ou pedaços de cada um deles.

Só que não se pode esquecer que por trás da peça, no fundo, existe um mundo a que ela, bem ou mal, querendo ou não, sempre se refere. Um mundo que é a sua matéria, amada ou maldita, e é também o nosso mundo. No entanto, embora vivamos dentro desse mundo, pois não existe outro, algo insiste, o tempo todo, em nos separar dele. E não são as peças, nem as palavras dos personagens, nem os próprios personagens, nem os atores, nem a voz mental e muda da leitura que nos distanciam do mundo. Estes são, antes, desvios, mediações necessárias, recursos que procuramos com afinco, e com os quais tentamos, ao contrário, alcançar esse mundo tão esquivo e que não aceitamos como algo perdido.

A mesma perspectiva vale para a tradução. Ela compreende um esforço para recuperar uma experiência oculta por trás da barreira de uma língua estranha. E, mais que isso, e por trás disso, compreende um esforço para tomar e manter contato com um mundo arredio, que se afasta de nós por todos modos, um mundo que não queremos perder e do qual não admitimos ser alijados. Pois é o nosso mundo e, no fundo, sabemos que, por mais que ele mude, num ímpeto aparentemente cego, por mais que nós mesmos devamos até transformá-lo, não temos nem teremos outro.

 

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Rubens Figueiredo é professor de português aposentado da rede estadual do Rio de Janeiro, escritor e tradutor. Entre seus livros estão os romances Barco a seco (2001, Prêmio Jabuti), Passageiro do fim do dia (2010, Prêmio Portugal-Telecom e Prêmio São Paulo) e os livros de contos O livro dos lobos (1994-2008), As palavras secretas (1998, Prêmio Jabuti e Prêmio da Biblioteca Nacional) e Contos de Pedro (2006). Suas traduções incluem obras de Anton Tchékhov, Ivan Turguêniev, Ivan Gontcharóv, Maksim Górki, Lev Tolstói e Isaac Bábel, entre outros. Recebeu o prêmio da Biblioteca Nacional pela tradução de Ressurreição e os prêmios da Academia Brasileira de Letras e da APCA pela tradução de Guerra e paz, ambos de Tolstói.

 

No banner: Peter Fitz e Edith Clever interpretam Moritz e Ruth, respectivamente, na montagem de 1978 de Trilogia do reencontro, peça publicada pela Temporal em 2021. Foto: Ruth Walz.

 


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