- teatro

"Por que leio dramaturgia?", por Luís Reis

Pedimos a pesquisadores(as), dramaturgos(as), tradutores(as) e demais envolvidos(as) no universo teatral responderem a uma pergunta que tanto nos inquieta desde o nascimento da Temporal e que tem espaço especial aqui, no Blog da editora: afinal, por que ler dramaturgia? Se o gênero não figura entre os frequentes do público brasileiro, não consta entre as categorias da maioria dos prêmios literários, ou é destaque nas livrarias e na imprensa, além de, com frequência, se distinguir da literatura, por que se interessar por ele? Em mais um relato da série, quem compartilha conosco a sua escuta própria do texto dramatúrgico é o professor e pesquisador da UFPE Luís Reis, com pesquisa voltada ao teatro popular da região nordeste. Atuando também como dramaturgo, teve inúmeras de suas peças encenadas, entre as quais destacamos "A filha do teatro" (2003), "A morte do artista popular" (2010) e "Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade" (2015)

por Luís Reis

Quando leio uma peça de teatro, ouço vozes. Diversas vozes: timbres, intensidades, tessituras, gêneros, cores, idades, sotaques e valores. Pronto, fica nítido: este breve texto foi escrito por alguém que gosta de ouvir vozes. Alguém que ouve vozes, digamos, profissionalmente: um trabalhador da dramaturgia. É só abrir o livro, e começa a algazarra.

Ouço a voz do autor, pela qual tenho afável interesse. Às vezes, forte e clara, essa voz ostenta orgulho do seu mundo de invenção e escancara o seu desejo de repercutir no mundo de cá, o mundo de verdade. Outras vezes, cautelosa, opta por falar baixo, sabendo que os ouvidos são irremediavelmente seletivos. Recebo-a com especial ternura quando percebo que ela, cabotina, finge se esconder. Em vão.

Ouço a voz da encenadora, que quer e que não quer se afinar com a voz do autor – nem com as outras vozes em jogo. É uma voz meio rouca, às duas e meia da madrugada, mas que vibra ao encontrar a resposta para uma “cena difícil”. Daqui de fora, não paro de lhe propor soluções simples e acachapantes. “Delírio, nada é fácil nessa arte.” Serão conversas a fio, com o cenógrafo, com a iluminadora, com o figurinista, com a coreógrafa, com o maquiador, com os músicos... todos lhe propondo soluções simples e delirantes.   

Ouço a voz dos atores, tropeçando naquelas falas pela primeira vez. Numa melodia incerta, ora de um jeito, ora de outro, mal respiram. Vaidade. Entusiasmado, subo no palco com eles. Logo desisto. Desço. Ouço uma voz plena no sonho dos aplausos e uma voz que some no calor da estreia. Eles seguirão noite adentro, na busca por uma voz franca e pródiga, capaz de calar a plateia.  

Ouço a voz dos personagens, voz que assombra o criador. É voz rara, que sai da boca dos atores, mas que tem vida própria. É voz única, mesmo quando dois atores dizem o mesmo texto, cada um com seu tom, sua dicção, seu fôlego. Será que ainda escreverei um personagem que tenha voz própria?  

Ouço a voz do produtor, na contagem regressiva dos dias de trabalho, dos números, dos patrocinadores, das horas, das faltas e das desculpas. “Só há um problema: fazer sucesso!” É uma voz que explica tudo, menos todos os mal-entendidos.

Ouço a voz dos técnicos: o sussurro ligeiro das camareiras, nas coxias; o vozeirão silenciado do contrarregra; a voz em falsete de um maquinista mal-humorado; e, ao entrar no teatro, o vozerio em cânone das apontadoras de assento.

Ouço principalmente a voz dos espectadores, antes, durante e depois. Ouço a voz dos que não puderam vir e a voz dos que não quiseram vir. Ouço a voz dos que nunca podem vir e a voz dos que nunca querem vir. Ouço o riso e o choro. Ouço uma gargalhada fora de hora, um soluço numa cena engraçada, uma tosse persistente. “Estou no teatro, te ligo depois.” Troco de lugar. Ouço a voz de quem deseja proibir a peça e a voz de quem deseja eternizar a peça. Ouço perguntas e respostas, vaias e gritos de “bravo!”. Ouço o burburinho ao final da apresentação. Estou lá, no meio deles, calado. Fecho o livro.  

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Luís Reis é dramaturgo, professor e pesquisador no curso de teatro, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).     


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