Meros joguetes
- crítica teatral

Meros joguetes

artigo por MARIA FERNANDA VOMERO. Nos encaminhando para o final de março, Maria Fernanda Vomero escreve sobre "Macbett", de Eugène Ionesco. Em seu artigo, a autora discorre sobre como a releitura de Ionesco cria um retrato tanto trágico quanto patético do exercício do poder.

A rubrica é precisa: durante alguns minutos, a cena precisa estar vazia. “O papel do cenógrafo-iluminador e o do sonoplasta são aqui muito importantes”, assinala o dramaturgo. Relâmpagos, chamas, tormenta: o céu se incendeia enquanto se escutam tiros, gritos, lamúrias. Depois, uma aparente trégua. Um vendedor de limonadas atravessa o campo de batalha, cobrando três francos por quatro garrafas. Afinal, a guerra não acaba com a sede ? nem com o medo. Novos ruídos de batalha, nova trégua. “Tem até transeuntes que passeiam”, afirma um oficial. Em seguida, cabeças continuam a rolar, como em repetição infinita. Acostumados ao espetáculo da guilhotina, o arquiduque, a esposa e um comandante tomam uma xícara de chá. E mais adiante, depois que toda e qualquer possibilidade de temperança ou clemência governamental tenha se esvaído, “a bruma se dissipa” ? diz o dramaturgo ? e um caçador de borboletas cruza o palco feito campo de batalha. Para que tudo recomece, já não como tragédia, mas sim como farsa.

 

Tais passagens pertencem a Macbett, dramaturgia escrita em 1972 pelo escritor franco-romeno Eugène Ionesco (1909-1994) e recentemente publicada pela Temporal, na tradução de Marina Bento Veshagem. Ionesco, também autor de A cantora careca e O rinoceronte, entre outras, foi um dos expoentes do teatro francês do século XX e um dos autores mais importantes de uma tendência artística surgida no pós-Segunda Guerra e conhecida por “teatro do absurdo”, na expressão do jornalista e crítico húngaro radicado na Inglaterra Martin Esslin (1961)[i]. Ou “teatro da derrisão”, como mais tarde sintetizou o pesquisador francês Emmanuel Jacquart (1974)[ii], trazendo para jogo um termo que se refere a uma “atitude zombeteira” ou até de escárnio diante da cena. Não se tratava de abdicar do sentido em sua totalidade, mas sim de abandonar tanto o totalitarismo do sentido quanto os sentidos totalizantes (definitivos, podemos dizer), sobretudo quando a vida mesma parecia ilógica: a ascensão contínua de regimes totalitários, o número indiscriminado de mortos nas guerras, o esfacelamento da linguagem como possibilidade de comunicação etc.

 

 

Máquinas de atrocidades

Em Macbett, Ionesco parte do texto clássico shakespeariano a fim de propor um reposicionamento narrativo para o conflito de sempre, ou seja, a disputa pela sucessão a um cargo de comando. Não há mais confronto entre bons e maus soberanos, ou entre governantes bem-intencionados e aqueles tirânicos, pois parece não existir nuances entre eles. Ao conquistar o poder, o indivíduo se despersonaliza, esvazia-se de si, a fim de adquirir ? e exercer ? autoridade suprema e irrestrita. Uma vez governante, já não tem agência própria; atua impelido pelo poder que detém. Assim, não importa se o soberano é Duncan, Macbett, Macol ou qualquer outro; tampouco importa se são príncipes, reis, presidentes da República ou ditadores ? como elenca o personagem Banco, em certo momento, para falar da dinastia que acredita estar destinado a estabelecer. Com o apagamento deliberado e voluntário da subjetividade dos governantes, não sobram resquícios de quaisquer valores morais ou éticos; seus governos transformam-se em máquinas de atrocidades.

 

Apesar da abdicação de si a modo de um pacto fáustico radical, o ambicionado cargo de comando concede benesses. “O Estado é ele”, afirma Macbett ao referir-se ao despotismo de Duncan. A referência ao absurdo do Absolutismo, o fenômeno político do início da era moderna que centralizava o poder absoluto na figura e nas mãos de um monarca, também surge em uma passagem particularmente inquietante do texto de Ionesco: com as bênçãos da Igreja, na figura de um monge, Duncan realiza “milagres”. Todo primeiro dia do mês, o arquiduque recebe “os escrofulosos, os flegmonosos, os tuberculosos, os histéricos” ? palavras de um oficial ? para curá-los. Em meio a tanta retórica vazia, talvez seja esse o único momento em que a linguagem faça algum sentido; há, na expressão dos enfermos que buscam ser curados, algum rastro de esperança ? ou melhor, algum resto de história.

 

 

Caráter a-histórico

As feiticeiras ? que, em Ionesco, são duas e não três como em Shakespeare ? revelam-se as figuras-chave da dramaturgia. Assumem distintas facetas conforme a projeção dos desejos alheios. São traiçoeiras. Uma delas, lasciva, sedutora e imoral, é quem instila a faísca de ambição em Macbett. Estabelece-se a profecia: ele assumirá o trono, mas só poderá ser derrubado por um homem não nascido de mulher. As feiticeiras também cuidam para que a profecia se cumpra e continue a se repetir indefinidamente. Evidencia-se, assim, a irracionalidade do poder e sua consequência mais perversa: os genocídios e assassinatos em massa.

 

As opções formais de Ionesco acentuam o caráter a-histórico do texto, cujas tintas tragicômicas já não chocam, embora permaneçam incômodas. Muitas vezes os mesmos monólogos e diálogos são retomados, mas com personagens ou situações diferentes, enfatizando o efeito de repetição. As cenas espelhadas reiteram, então, o automatismo das personagens; o absurdo surge da previsibilidade do comportamento humano: da subserviência à tirania, sem gradações e sem redenção possível.

 

Macbett é, em suma, uma peça sobre a impossibilidade da experiência convivial e comunitária sob o jugo dos projetos totalitários de poder, independentemente da roupagem que assumam (monarquias, teocracias, plutocracias ou até mesmo ditas democracias liberais), a exemplo dos eventos brutais do século XXI que temos testemunhado. Afinal, aparentemente não há escapatória: tornamo-nos todos meros joguetes.



Maria Fernanda Vomero é jornalista, performer, orientadora criativa de projetos artísticos e doutora em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo, com uma pesquisa sobre processos cênicos, território e experiência micropolítica na América Latina. No mestrado, realizado na mesma instituição, debruçou-se sobre as experiências teatrais desenvolvidas na Palestina. Tem especialização em Documental Creativo pela Universitat Auto?noma de Barcelona (UAB), Espanha, e graduação em Jornalismo pela USP. Trabalhou como curadora das Ações Pedagógicas da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo de 2015 a 2020. Atua como provocadora cênica em diversos coletivos teatrais da cidade de São Paulo desde 2014. Como jornalista, foi repórter e editora da Superinteressante; editora-chefe da Revista das Religiões e editora da Bravo!, quando trabalhou na Editora Abril (1999-2007), além de ter colaborado com diversas outras publicações. É autora e intérprete de conferências performáticas, apresentadas em São Paulo, Santiago (Chile), Cidade do México e Oaxaca (México). Escreveu o livro A DIGNA 10 anos (2022) sobre a trajetória artística do coletivo teatral paulistano A Digna, publicado dentro das ações contempladas na 34ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Além disso, trabalha como mediadora de debates e redatora freelancer e escreve críticas em teatro, cinema e literatura.



[i] Embora Martin Esslin tenha publicado seu livro The Theatre of the Absurd em 1961, ele já vinha pesquisando o tema muito tempo antes, como explica em seu prefácio à edição revista e ampliada da obra, lançada no Brasil como O Teatro do Absurdo (Zahar, 2018, trad. Barbara Heliodora). Os capítulos do livro são dedicados aos dramaturgos Samuel Beckett, Arthur Adamov, Eugène Ionesco, Jean Genet e Harold Pinter, reunidos por afinidades estéticas e convenções dramáticas, além de menções a vários outros autores do período.

 

 

[ii] Le Théâtre de Dérision, publicado originalmente em 1974, aborda as obras de Beckett, Ionesco e Adamov, comentando a recusa desses dramaturgos à tradição do teatro de vanguarda da época.