A rubrica é precisa: durante alguns minutos, a cena precisa
estar vazia. “O papel do cenógrafo-iluminador e o do sonoplasta são aqui muito
importantes”, assinala o dramaturgo. Relâmpagos, chamas, tormenta: o céu se
incendeia enquanto se escutam tiros, gritos, lamúrias. Depois, uma aparente trégua.
Um vendedor de limonadas atravessa o campo de batalha, cobrando três francos
por quatro garrafas. Afinal, a guerra não acaba com a sede ? nem com o medo. Novos
ruídos de batalha, nova trégua. “Tem até transeuntes que passeiam”, afirma um
oficial. Em seguida, cabeças continuam a rolar, como em repetição infinita. Acostumados
ao espetáculo da guilhotina, o arquiduque, a esposa e um comandante tomam uma
xícara de chá. E mais adiante, depois que toda e qualquer possibilidade de
temperança ou clemência governamental tenha se esvaído, “a bruma se dissipa” ?
diz o dramaturgo ? e um caçador de borboletas cruza o palco feito campo de
batalha. Para que tudo recomece, já não como tragédia, mas sim como farsa.
Tais passagens pertencem a Macbett, dramaturgia
escrita em 1972 pelo escritor franco-romeno Eugène Ionesco (1909-1994) e
recentemente publicada pela Temporal, na tradução de Marina Bento Veshagem. Ionesco,
também autor de A cantora careca e O rinoceronte, entre outras, foi
um dos expoentes do teatro francês do século XX e um dos autores mais
importantes de uma tendência artística surgida no pós-Segunda Guerra e conhecida
por “teatro do absurdo”, na expressão do jornalista e crítico húngaro radicado
na Inglaterra Martin Esslin (1961)[i]. Ou “teatro da derrisão”, como
mais tarde sintetizou o pesquisador francês Emmanuel Jacquart (1974)[ii], trazendo para jogo um
termo que se refere a uma “atitude zombeteira” ou até de escárnio diante da
cena. Não se tratava de abdicar do sentido em sua totalidade, mas sim de abandonar
tanto o totalitarismo do sentido quanto os sentidos totalizantes (definitivos,
podemos dizer), sobretudo quando a vida mesma parecia ilógica: a ascensão contínua
de regimes totalitários, o número indiscriminado de mortos nas guerras, o
esfacelamento da linguagem como possibilidade de comunicação etc.
Máquinas de atrocidades
Em Macbett, Ionesco parte do texto clássico shakespeariano
a fim de propor um reposicionamento narrativo para o conflito de sempre, ou
seja, a disputa pela sucessão a um cargo de comando. Não há mais confronto
entre bons e maus soberanos, ou entre governantes bem-intencionados e aqueles tirânicos,
pois parece não existir nuances entre eles. Ao conquistar o poder, o indivíduo se
despersonaliza, esvazia-se de si, a fim de adquirir ? e exercer ? autoridade
suprema e irrestrita. Uma vez governante, já não tem agência própria; atua impelido
pelo poder que detém. Assim, não importa se o soberano é Duncan, Macbett, Macol
ou qualquer outro; tampouco importa se são príncipes, reis, presidentes da
República ou ditadores ? como elenca o personagem Banco, em certo momento, para
falar da dinastia que acredita estar destinado a estabelecer. Com o apagamento deliberado
e voluntário da subjetividade dos governantes, não sobram resquícios de quaisquer
valores morais ou éticos; seus governos transformam-se em máquinas de
atrocidades.
Apesar da abdicação de si a modo de um pacto fáustico
radical, o ambicionado cargo de comando concede benesses. “O Estado é ele”,
afirma Macbett ao referir-se ao despotismo de Duncan. A referência ao absurdo
do Absolutismo, o fenômeno político do início da era moderna que centralizava o
poder absoluto na figura e nas mãos de um monarca, também surge em uma passagem
particularmente inquietante do texto de Ionesco: com as bênçãos da Igreja, na
figura de um monge, Duncan realiza “milagres”. Todo primeiro dia do mês, o
arquiduque recebe “os escrofulosos, os flegmonosos, os tuberculosos, os
histéricos” ? palavras de um oficial ? para curá-los. Em meio a tanta retórica
vazia, talvez seja esse o único momento em que a linguagem faça algum sentido;
há, na expressão dos enfermos que buscam ser curados, algum rastro de esperança
? ou melhor, algum resto de história.
Caráter a-histórico
As feiticeiras ? que, em Ionesco, são duas e não três como
em Shakespeare ? revelam-se as figuras-chave da dramaturgia. Assumem distintas
facetas conforme a projeção dos desejos alheios. São traiçoeiras. Uma delas,
lasciva, sedutora e imoral, é quem instila a faísca de ambição em Macbett. Estabelece-se
a profecia: ele assumirá o trono, mas só poderá ser derrubado por um homem não
nascido de mulher. As feiticeiras também cuidam para que a profecia se cumpra e
continue a se repetir indefinidamente. Evidencia-se, assim, a irracionalidade
do poder e sua consequência mais perversa: os genocídios e assassinatos em
massa.
As opções formais de Ionesco acentuam o caráter
a-histórico do texto, cujas tintas tragicômicas já não chocam, embora
permaneçam incômodas. Muitas vezes os mesmos monólogos e diálogos são
retomados, mas com personagens ou situações diferentes, enfatizando o efeito de
repetição. As cenas espelhadas reiteram, então, o automatismo das personagens;
o absurdo surge da previsibilidade do comportamento humano: da subserviência à
tirania, sem gradações e sem redenção possível.
Macbett é, em suma, uma peça sobre a impossibilidade da experiência convivial e comunitária sob o jugo dos projetos totalitários de poder, independentemente da roupagem que assumam (monarquias, teocracias, plutocracias ou até mesmo ditas democracias liberais), a exemplo dos eventos brutais do século XXI que temos testemunhado. Afinal, aparentemente não há escapatória: tornamo-nos todos meros joguetes.
*
Maria Fernanda
Vomero é jornalista, performer, orientadora
criativa de projetos artísticos e doutora em Artes Cênicas pela Universidade de
São Paulo, com uma pesquisa sobre processos cênicos, território e experiência
micropolítica na América Latina. No mestrado, realizado na mesma instituição, debruçou-se
sobre as experiências teatrais desenvolvidas na Palestina. Tem especialização
em Documental Creativo pela Universitat Auto?noma de Barcelona (UAB), Espanha,
e graduação em Jornalismo pela USP. Trabalhou como curadora das Ações
Pedagógicas da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo de 2015 a 2020. Atua
como provocadora cênica em diversos coletivos teatrais da cidade de São Paulo
desde 2014. Como jornalista, foi repórter e editora da Superinteressante;
editora-chefe da Revista das Religiões e editora da Bravo!,
quando trabalhou na Editora Abril (1999-2007), além de ter colaborado com
diversas outras publicações. É autora e intérprete de conferências
performáticas, apresentadas em São Paulo, Santiago (Chile), Cidade do México e
Oaxaca (México). Escreveu o livro A DIGNA 10 anos (2022) sobre a
trajetória artística do coletivo teatral paulistano A Digna, publicado dentro
das ações contempladas na 34ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro
para a Cidade de São Paulo. Além disso, trabalha como mediadora de debates e
redatora freelancer e escreve críticas em teatro, cinema e literatura.
[i] Embora Martin Esslin tenha publicado seu livro The Theatre of the
Absurd em 1961, ele já vinha pesquisando o tema muito tempo antes, como
explica em seu prefácio à edição revista e ampliada da obra, lançada no Brasil
como O Teatro do Absurdo (Zahar, 2018, trad. Barbara Heliodora). Os
capítulos do livro são dedicados aos dramaturgos Samuel Beckett, Arthur Adamov,
Eugène Ionesco, Jean Genet e Harold Pinter, reunidos por afinidades estéticas e
convenções dramáticas, além de menções a vários outros autores do período.
[ii] Le Théâtre de Dérision, publicado
originalmente em 1974, aborda as obras de Beckett, Ionesco e Adamov, comentando a recusa desses
dramaturgos à tradição do teatro de vanguarda da época.