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Apontamentos sobre “Eles não usam black-tie”

artigo por GUSTAVO ASSANO — Ao destacar o que chama de o “status lendário” de uma das peças mais célebres da história teatral brasileira, o pesquisador se lança a uma investigação sobre as vantagens e desvantagens, do ponto de vista da crítica, de tratar de obras teatrais canônicas 

por Gustavo Assano

 

  1. Sobre a condição de “marco inaugural” e “marco histórico”

 

Refletir sobre a dramaturgia Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri (1934–2006), significa lidar com uma série de marcos na história da modernização teatral brasileira, todos muito caros à historiografia hegemônica sobre a implantação do teatro moderno no Brasil. Estreada em 22 de fevereiro de 1958, sua encenação pelo Teatro de Arena, dirigida por José Renato (1926–2011), foi celebrada como sendo inaugural da dramaturgia social brasileira e tida como pioneira na tematização de assuntos da realidade política contemporânea do país do ponto de vista dos trabalhadores e das classes menos favorecidas. A dramatização dos três atos que retratam o impacto da organização de uma greve na vida de um núcleo familiar que habita um barraco numa favela de morro carioca foi celebrada por abrir as portas para a valorização de autores teatrais brasileiros. Guarnieri repentinamente foi reconhecido como um dos principais autores da dramaturgia nacional moderna, tida como ainda em processo de formação. A temporada de um ano do espetáculo provou para muitos que era possível realizar de maneira coerente e angariando inegável sucesso de bilheteria um teatro que aspirasse falar da gente e da realidade brasileiras, o que levou, mais tarde, o melhor da crítica a comparar o autor com nomes da estirpe de Nelson Rodrigues (1912–1980), Ariano Suassuna (1927–2014), Jorge Andrade (1922–1984) e Dias Gomes (1922–1999).

Com tantos marcos e estatutos inaugurais como traços de distinção, não seria exagero descrever a encenação de Eles não usam black-tie como “lendária”. Há, no entanto, vantagens e desvantagens para a reflexão crítica ao lidar com lendas. É, sem dúvida, motivo de alívio saber que uma obra como esta tem seu lugar garantido no “cânone” do teatro moderno brasileiro, pois se passará um bom tempo antes que deixe de ser obrigatório revisitar o trabalho acumulado do Teatro de Arena – sua formação, suas lutas, fases, conquistas, impasses e contradições. Há, porém, um forte hábito da historiografia teatral brasileira em resumir o processo de modernização teatral no Brasil a alguns marcos autorais, reduzindo-o à enumeração de espetáculos lendários tornados referenciais por ratificarem o projeto de atualização técnica e profissional do teatro brasileiro iniciado na década de 1940. O debate é amplo, poderia ser estendido para muitas esferas do processo formativo do teatro moderno local, mas para não desviar demais, destaquemos que a principal desvantagem desse hábito é a forma irrefletida em lidar com tais obras marcantes devido à função de periodização que cumprem. Trata-se de certa automação na forma de interpretar obras tidas como importantes, pois é mais prioritário confirmar o que delas se cumpre de etapas do processo de atualização do que desvendar processos de produção e movimentos internos de obras singulares. Mantêm-se intactos celebração e reconhecimento merecidos ao preço de aprisionar e impedir o frescor de interpretações históricas e análises estéticas. Ignora-se o fato de que reflexões críticas de obras específicas podem transformar leituras históricas ao revelarem contradições internas tanto de uma como de outra. O interesse por estes marcos fica preso a uma apreciação museológica, como se os leitores do século xxi não tivessem questões novas para aprender e pensar acerca dessas peças, pois seriam apenas troféus empoeirados de glórias datadas, temas para especialistas debaterem em simpósios de história, literatura e artes cênicas.

Reduzir Eles não usam black-tie a uma dessas etapas faz a leitura sobre a dramaturgia padecer da mesma automação prejudicial ao aprofundamento da reflexão histórica e estética. É preciso ultrapassar o encantamento, o estatuto de lenda, para que leituras produtivas ainda possam ser feitas e novas formas de compreensão sobre o processo de modernização do teatro brasileiro sejam compostas.

 

  1. “Antinomia histórica” em Eles não usam black-tie

 

Devemos a Iná Camargo Costa o esclarecimento da riqueza do conteúdo da forma que compõe a unidade da dramaturgia Eles não usam black-tie. No primeiro capítulo de seu estudo incontornável A hora do teatro épico no Brasil,[1] já na forma de apresentar e contextualizar a montagem do texto de Guarnieri, encontramos o esforço de desmistificação das narrativas sobre os marcos e os pioneirismos da peça. Tendo em mente a obra A moratória, de Jorge Andrade, encenada poucos anos antes no Teatro Maria Della Costa, esclarece a autora o equívoco na afirmação “Eles não usam black-tie abriu as portas do teatro brasileiro ao dramaturgo nacional”. A recepção crítica da época logo celebrou a valorização de peças nacionais cujo sucesso do espetáculo ajudava a promover, mas foi tímida em destacar a novidade real: a situação da classe operária brasileira como assunto estruturante de um drama. Assim, a apreciação elogiosa do espetáculo por quem fazia pouco caso da novidade histórica do tema permitiu à estudiosa do teatro político brasileiro entrever “uma espécie de antinomia histórica” na composição interna da dramaturgia em questão: há um “flagrante desencontro entre forma e conteúdo”, uma contradição que imbui de validez a apreciação do espectador ou leitor balizado seja pela primeira (forma) ou pelo segundo (conteúdo).

O enredo organizado em três atos compostos cada um de dois quadros pode ser descrito em função dessa contradição. No plano da forma, estamos diante de um drama familiar delimitado pelo ambiente doméstico inaugurado, desenvolvido e concluído em função dos conflitos de Tião, filho mais velho de Otávio e Romana, operário de fábrica que acaba de descobrir que será pai e, portanto, deseja se casar com sua companheira, Maria. No entanto, o assunto que desencadeia os dissensos e colisões de vontades entre os personagens é a necessidade, seguida da eclosão e subsequente vitória de uma greve que tem Otávio, também operário e da mesma fábrica em que o filho trabalha, como uma das principais lideranças. A forma expõe a presentificação dos conflitos interpessoais dos habitantes do barraco; o conteúdo, o assunto central da peça, não é dramatizado, pois está num plano exterior, esclarecido por rememorações, narrativas e comentários de personagens que explicam suas motivações e decisões. O clímax sentimental do espetáculo consiste na colisão final entre pai e filho, que culmina na expulsão de Tião da casa onde Otávio é chefe de família. A percepção de Iná Camargo Costa iluminou o que torna a colisão antinômica: o assunto da peça, o plano do conteúdo, expõe o ponto de vista de Otávio, o que permite identificar dignidade e coerência na intransigência do ponto de vista do pai; a forma da peça, porém, conduz a ação desencadeada a partir do ponto de vista de Tião, o que torna insuportável o castigo e compõe um efeito dilacerante no rompimento da aparente harmonia familiar do barraco.

A identificação dessa antinomia interna ao processo de configuração de Eles não usam black-tie permitiu o surgimento de um novo olhar crítico sobre os resultados do espetáculo, e virou de cabeça pra baixo os critérios de avaliação sobre a eficácia desse drama e a compreensão dos limites históricos da sedimentação da forma do drama burguês no Brasil. O que para a crítica da época representava “perda de intensidade e vigor” (pois do primeiro ao segundo ato diminui-se a intensidade da dinâmica da apresentação dos personagens centrais e passa-se para cenas de diálogos “expositivos”, em que, numa manhã de domingo, os habitantes do barraco apenas conversam e narram recordações de acontecimentos passados de diferentes momentos da vida de cada um da família) passa a ser reconhecido como força. Ao perceber a unidade contraditória da composição, o que era tido como defeito passa a ser visto como qualidade, complexidade e profundidade. Da interação amena entre Romana e Tião, compõe-se a narrativa pormenorizada do passado do filho, que foi criado por padrinhos da zona sul do Rio quando o pai estava preso por envolvimento com greves passadas, o que esclarece o ressentimento de Tião e sua vergonha da condição operária. Também é por exposição épica, isto é, não dramática, que se anuncia a aprovação da greve em assembleia, a prisão de lideranças e os dilemas éticos de Tião, dividido entre a busca por estabilidade financeira para sustentar a nova família ou aderir à luta pelas demandas de classe.

O que torna notável os achados críticos de Costa é a percepção de que o verdadeiro interesse, a carga viva da obra, está justamente naquilo que ela tem de problemático. A riqueza não é identificada na mera celebração de marcos históricos – ainda que, como se viu, também cumprem uma função crítica. Esse núcleo problemático e contraditório que transforma defeitos em qualidades, fraquezas em força (e vice-versa), esclareceu o processo histórico de configuração do teatro épico em solo brasileiro como necessidade criativa, necessidade interna na composição de trabalhos teatrais antes mesmo da disseminação da teoria brechtiana no Brasil, como acontecerá em momentos subsequentes. É justamente a ausência da regularidade organizada da forma tradicional do drama burguês europeu em solo brasileiro que torna curiosa a formação do drama moderno local, pois não surge da fricção contraposta a uma tradição ultrapassada, revelando o paulatino exaurimento de uma forma. Foi do desejo de confronto com a realidade histórica e social que a prática teatral forneceu régua e compasso para jovens artistas descobrirem novas formas de dramatização. A vantagem deste ponto de vista analítico são as possibilidades de leituras que oferece por serem desdobradas, pois uma série de ensejos de reflexão dos elementos épicos de Eles não usam black-tie ainda não foram explorados. A seguir forneceremos apenas dois exemplos da argumentação.

 

  1. Trabalho e utopia em Eles não usam black-tie

 

O primeiro exemplo diz respeito à abertura do espetáculo. O elemento problemático da dramaturgia, identificado por Iná Camargo Costa, deve-se à contradição entre ambiente doméstico presentificado e assunto apresentado pela forma épica, que diz respeito aos conflitos no espaço de trabalho. Esses são assuntos que revelam a parcialidade dos personagens na oposição entre capital e trabalho num contexto de expansão da reprodução social de relações capitalistas em solo urbano brasileiro. Temos nesta oposição formal, portanto, uma replicação da oposição entre tempo livre circunscrito ao espaço doméstico (drama) e tempo de trabalho não dramatizado, apenas narrado (épico). O pivô dessa oposição, principal arauto entre os dois planos, é Otávio, militante ativo, liderança de comando de greve e chefe de família. No entanto, não deveria ser tratado como dado menor a primeira indicação da rubrica de abertura do primeiro ato da dramaturgia de Guarnieri: “Barraco de Romana”. Não é “Barraco de Otávio”, “Barraco de Tião”, ou até mesmo “Barraco da família tal”. Esse dado nos remete também a um aparte que deve ser feito a oposição entre trabalho e ambiente doméstico: não é verdade que o mundo do trabalho não está presentificado na dramaturgia. Não há quadro em que Romana, Maria e Terezinha estejam presentes que não haja uma trouxa ou balde de roupas sujas para serem lavadas, ou que não se discuta as roupas por lavar, a distribuição de tarefas para a comida por ser cozinhada, a arrumação por ser feita para os preparativos da festa de noivado. A questão não diz respeito apenas às assimetrias estruturais da divisão sexual do trabalho na classe trabalhadora, mas também, por exemplo, à tematização da ética do mundo do crime, que não pode ser totalmente apartado da compreensão sobre atividade laboral retratada na peça. Tradicionalmente, esse tema é identificado pela crítica a partir do diálogo entre Jesuíno e Tião, mas as estripulias de Chiquinho, o irmão caçula de Tião, no armazém em que trabalha, costumam ser esquecidas. Tais conflitos éticos não são tratados apenas do ponto de vista moralista, o qual cobra punição contra a malandragem e estima a figura do “trabalhador honesto”, pois surgem como expressão de uma cultura pautada pelas alternativas de sobrevivência em situações reais de uma classe social específica, ou seja, são conflitos que moldam interações sociais cotidianas básicas e formas de vida, não apenas dilemas morais que codificam condutas positivas e negativas.

A manutenção do ambiente doméstico não é apenas uma oposição lógica ao tempo de trabalho, mas elemento estruturante da economia de subsistência urbana e de manutenção da mercadoria força de trabalho. Como situou Francisco de Oliveira, antes da década de 1920, a formação dos primeiros núcleos industriais teve que lidar com a ausência de infraestrutura urbana básica, sendo um obstáculo fundamental a ser confrontado para abarcar o processo intenso de expansão de industrialização como realizado nos primeiros projetos de governos desenvolvimentistas. Entre as décadas de 1940 e 1960, a expansão industrial se deu sem contar com “magnitudes prévias de acumulação”, o que motivou “uma divisão do trabalho para além dos muros da fábrica”,[2] e compatibilizou a ausência de acumulação capitalista prévia com um crescimento horizontal nas cidades, cuja forma aparente é o “caos urbano”. No primeiro quadro do terceiro ato, em diálogo prosaico, Terezinha revela que sua tia aumentou o preço do serviço de lavadeira e passadeira, e Romana acusa a prestadora do serviço de “exploração”. Assim, encontramos indicada um fundamento da manutenção da atividade laboral em ambiente doméstico de barracos como o de Romana, que manteve a família unida quando Otávio esteve preso: a manutenção do trabalho informal para compensar o baixo custo da reprodução da força de trabalho do ponto de vista da classe empresarial, ausente na ambientação da dramaturgia, mas pressuposta para se compreender as relações sociais pautadas. São questões ainda por serem desdobradas do ponto de vista crítico, e suas consequências estéticas devidamente matizadas nos termos de uma leitura sobre a relação contraditória entre arte, cultura e sociedade propiciada pela obra.

O segundo exemplo diz respeito à utopia exposta na idealização das classes populares organizada na dramaturgia de Guarnieri. Situaremos tal utopia em dois elementos épicos nunca aprofundados na história da recepção crítica da dramaturgia Eles não usam black-tie: a função épica cumprida por Juvêncio, o violeiro de rua do morro, e a utopia de Maria em sua descrição da oposição entre “favela” e “cidade”.

O primeiro quadro do primeiro ato da peça abre com Tião e Maria adentrando o barraco numa noite chuvosa depois de um programa de cinema. Enquanto lamentam a roupa suja de lama, Tião caçoa de Juvêncio, que toca violão fora de cena: “Ei, Juvêncio! Tocando na chuva estraga a viola! (Pausa. Violão afasta-se) É um maluco... Tocando na chuva”. A abertura, portanto, se dá com a canção de Juvêncio, que serve como tema do espetáculo, composta por Gianfrancesco Guarnieri em parceria com Adoniran Barbosa (1910–1982). Caberia uma análise detida do sentido lírico nada óbvio do conteúdo da letra, mas para não prolongarmos demais a reflexão, enfatizemos que com esta estrutura de inauguração da primeira cena a relação entre ambiente doméstico (interior) e ambiente exterior (espaço público) não é inaugurada pelo discurso de organização de trabalhadores em espaço fabril, mas entre um artista de rua e o ambiente doméstico. A oposição entre “artista doido” e os trabalhadores que voltam para casa depois de uma escapulida de namoro durante o tempo livre traz uma série de questões a serem aprofundadas num estudo futuro: a canção de Juvêncio, que será retomada em diversos momentos ao longo do primeiro e terceiro atos, e que funciona como uma espécie de coro, um ponto de vista externo que cria uma parcialidade exterior aos diálogos e interações puramente intersubjetivas entre os personagens em cena. Trata-se da formalização de uma objetividade coletiva na peça, que revela algo que não é nem espaço doméstico, nem chão de fábrica, algo que comove até mesmo Tião, o qual esquece de sua vergonha de ser favelado quando escuta os versos do violonista boêmio:

Nosso amor é mais gostoso

Nossa saudade dura mais

Nosso abraço mais apertado

Nós não usa as “bleque-tais”.

 

Minhas juras são mais juras

Meus carinhos mais carinhoso

Tuas mãos são mãos mais puras,

Teu jeito é mais jeitoso...

Nós se gosta muito mais,

Nós não usa as “bleque-tais”...

Os versos invadem o sono de Chiquinho, que sonhava com escola de samba antes de despertar e perceber que a música do mundo onírico vinha da rua. O destino de Juvêncio é o mesmo de Espírito da Luz Soares, personagem vivido por Grande Otelo no filme Rio, Zona Norte, de 1957, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. O “nós” dos versos de Juvêncio iluminam o sentido da utopia de Maria, que assim compõe sua leitura sobre a oposição entre cidade e favela, no segundo quadro do segundo ato, quando Tião lhe pergunta se não gostaria de sair da favela, abandonar a comunidade pobre para viver na cidade:

Maria (Olha em volta) Gostaria! Mas levando todo mundo comigo: D. Romana, Mamãe, João, Chiquinho, Seu Otávio, Tezinha, Ziza, Flora... o Espanhol... todo mundo. (Olhando para o lado do cruzeiro) Até o cruzeiro lá do alto... (Pausa) Favela sem cruzeiro deve sê feia!

Maria anuncia sua utopia por meio de um raciocínio escondido por trás de seus anseios comunitários, um movimento reflexivo que situa a identidade de classe da peça: no lugar de uma oposição entre dois planos, a cidade e a favela, a personagem anuncia a contradição da posição da favela consigo mesma. A norma dos anseios por ascensão social, que é apresentada pelo ponto de vista de Tião, é reproduzida por Maria mas com a ingenuidade do “nós”, a coletividade anunciada nos versos de Juvêncio. Ou seja, não se trata de mero discurso individual. Ao mudar o sujeito que busca a transformação, porém, a própria ideia de transformação, inicialmente pautada pela ascensão individual de classe, se transforma. Em sua aspiração pela simultaneidade paradoxal da mudança de lugar com a permanência da favela, nem a cidade seria a mesma, nem a comunidade permaneceria como é. A realização lógica da idealização, que parte do estado de coisas existente, partiria do ponto de vista crítico de Maria; este é fornecido pela própria situação, e, a partir dela, Maria compõe um vir-a-ser utópico, que não pode realizar-se senão por uma transformação indeterminada de todos os termos relacionados, a saber, a cidade, a favela e os indivíduos. A contradição não está entre uma classe e outra, mas de uma classe consigo mesma, uma classe contraposta aos seus anseios e suas falsas alternativas de transformação. A régua com que se mede a realidade não é uma norma exterior (a ansiedade pela ascensão social), ela é fornecida pela própria comunidade, pelo próprio anseio de autopreservação comunitária, que na passagem anunciada não é apenas projeção identitária, é também transformação da própria identidade. Os termos e critérios de transformação da situação da classe são fornecidos por ela própria, a partir de seus sonhos enquanto adequada à ordem de reprodução do sistema. Porém, aqui eles são declarados por Maria como sonhos cuja realização paradoxal não pode promover outra coisa senão a transformação desse sistema. Não é o trabalho formal em chão de fábrica que fornece o combustível para a utopia de Maria, mas a vida organizada em comunidade. A favela se torna uma contraética social em oposição à ética burguesa do trabalho individual. Nasce de uma contradição interna ao sonho de Maria, e não de uma oposição estanque, ossificada, reduzida a etapas de imperativos categóricos de cartilha stalinista ou de promessas de ascensão social de um processo idealizado de aburguesamento.

Mas não são apenas as leituras ainda não desdobradas sobre a dramaturgia em questão que precisam ser aprofundadas. Também o entendimento histórico de seu processo de produção precisa confrontar novos níveis de complexidade. Concluiremos esta reflexão com uma breve digressão sobre tal aspecto.

 

  1. Experimentação e trabalho coletivo: modernização alternativa bloqueada

 

Três estudos recentes iluminam o sentido verdadeiro do marco fundamental ainda não devidamente esclarecido que Eles não usam black-tie representa. O primeiro deles é a notável dissertação de mestrado redigida por Sara Mello Neiva, O Teatro Paulista do Estudante nas origens do nacional popular,[3] em que se narra os anos de formação artística de Guarnieri, entre outros expoentes do importante grupo amador, sob direção e orientação de Ruggero Jacobbi (1920–1981), realizador de destaque do teatro italiano do imediato pós-guerra, um dos fundadores do Piccolo Teatro di Milano e provocador entusiasta do teatro amador brasileiro. Neiva conclui seu estudo situando os conflitos, debates e decisões que culminaram na integração de parte dos membros do Teatro Paulista do Estudante (tpe) ao Teatro de Arena, fato que alterou por completo as diretrizes de pesquisa e elaboração interna do repertório do jovem grupo de teatro profissional. Os dois outros estudos são os trabalhos impressionantes redigidos como dissertação de mestrado e tese de doutorado por Paula Autran, respectivamente Teoria e prática do seminário de dramaturgia do Teatro de Arena e O pensamento dramatúrgico de Augusto Boal.[4] Neles, Autran descreve cada etapa de formação e amadurecimento do Laboratório de Interpretação e do Curso de Dramaturgia ministrados por Augusto Boal (1931–2009) quando da sua entrada no Teatro de Arena.

Para situar os anos formativos de grandes artistas do Arena no tpe, é fundamental entender a influência exercida por Ruggero Jacobbi. Ele migrou para o Brasil no final da década de 1940, no contexto da formação da “missão italiana” do novo teatro empresarial. Naquele momento, consolidavam-se os termos da atualização administrativa, técnica e profissional, levada a cabo pela modernização teatral que era promovida com o sucesso do modelo do Teatro Brasileiro de Comédia. Jacobbi era um ponto fora da curva no ambiente tebecista. Neiva descreve a trajetória formativa dele, bem como a formação do tpe e o processo de formação artística e política de seus envolvidos de maior destaque, a saber, Vera Gertel, Oduvaldo Vianna Filho (1936–1974) e Guarnieri. É de particular interesse para nossa reflexão as páginas do capítulo em que Neiva descreve o processo de encenação da peça de estreia do coletivo, em 1955, A rua da igreja, do irlandês Lennox Robinson (1886–1958). Nelas são expostas o sentido politizador da prática teatral amadora em oposição ao teatro profissional como um programa estético e político dos artistas envolvidos. A precarização, os riscos assumidos pelo compromisso sem experiência profissional, os debates acalorados priorizados acima do prumo técnico segundo critérios hegemônicos do período levaram alguns ao emprego do termo “amador” como descrição negativa ao rememorarem os ensaios do espetáculo.

Como destaca Neiva, essas lembranças “permitem um vislumbre de um modo de produção efetivamente na contramão ao modelo profissional em curso no Brasil”.[5] Os atores envolvidos perdiam tempo que supostamente deveria ser gasto com finalização e ensaios gerais discutindo política, debatendo quais sentidos queriam dar para o espetáculo, as formas de se fazer a peça, ou seja, os atores “intervinham diretamente em aspectos totalizantes da criação”.[6] Jacobbi, ao invés de cercear e limitar, estimulava tal forma de interação entre os artistas amadores. A formação daqueles jovens artistas se deu através da valorização da forma organizativa amadora pela “crença de que ali estava uma possibilidade de livre experimentação e investigação social no teatro”.[7] Ali, Guarnieri compreende o que significava posicionar-se em debates de processos criativos sem sacrificar aprendizado artístico, bem como a superar estrelismos e intelectualismo sem consequências práticas. Toda a formação política acerca do conceito de nacional-popular e o sentido da busca por uma dramaturgia nacional se deu nessa experiência orientada por Jacobbi, um autodescrito italiano surrealista de aspirações gramscianas e crítico do stalinismo.

Quando parte do elenco do tpe se integra ao Arena, pouco tempo depois, em 1956, Augusto Boal é contratado por José Renato e inicia no mesmo ano seu Laboratório de Interpretação, aspirando compor atividades de pesquisa de um Teatro Laboratório aos moldes do que é concebido pelos escritos de Stanislávski (1863–1938), forma de trabalho com a qual Boal trava contato no Actors Studio em seus anos de estudo na Universidade de Columbia (eua) no começo da década de 1950. O projeto era trazer maior autonomia crítica e criativa para os integrantes do grupo ao lidar com dramaturgias modernas. Ao contrário do que se convenciona afirmar, Paula Autran nos esclarece que o Seminário de Dramaturgia ministrado por Boal se inicia antes da encenação de Eles não usam black-tie; surge em 1956 como uma atividade complementar aos exercícios do Laboratório de Interpretação.[8] É por meio desse estímulo que Gianfrancesco Guarnieri começa a escrever peças. É a partir do aprofundamento de técnicas de experimentação e dos desdobramentos de trabalhos criativos, os quais aprofundam o aprendizado de processos de criação do teatro amador, que Guarnieri escreve Eles não usam black-tie, inaugurando não apenas uma nova fase no grupo, mas também na história do teatro moderno em São Paulo.[9]

Concluiremos nossos apontamentos com a seguinte afirmação: Eles não usam black-tie não consistiu apenas numa bem-sucedida empreitada comercial e num checkpoint do processo de atualização do teatro moderno iniciado pelo modelo empresarial tebecista. O caminho de Guarnieri no Arena representou o processo de amadurecimento da politização vivida no Teatro Paulista do Estudante em seu contexto amador. Isto é, trouxe a prática amadora que transgredia a hiperespecialização de funções na divisão empresarial dos trabalhos teatrais para o contexto do teatro profissional da época. Os limites da obra apontam para um trabalho laboratorial em processo, que expõe a novidade real de um trabalho de teatro realizado numa companhia que integra pela primeira vez ao circuito paulista de teatro comercial um processo em aberto de formação pedagógica de artistas, ou seja, um processo experimental de produção teatral. O Teatro de Arena passa a compor a organização da liberdade criativa coletivizante vivida como “amadorismo indisciplinado” nos debates travados por parte do elenco ao longo dos anos de experiência no tpe.

Os limites da peça, portanto, revelam as possibilidades de um teatro ainda por nascer, que, em termos experimentais, apontou caminhos por serem explorados, corrigidos e expandidos. Os limites dos elementos dramáticos podem ser pensados tanto em termos dos limites do processo de politização dos militantes envolvidos, como Iná Camargo Costa aponta, como também dos limites das orientações do pensamento sobre dramaturgia no momento da evolução de uma pesquisa dramatúrgica em processo no momento de estreia da encenação pelo grupo. Pela primeira vez, um produto teatral era mais do que um produto: revelava um processo amplo de possibilidades e descobertas latentes. Mais que uma atualização cumprida, a encenação de Eles não usam black-tie consistiu na inauguração da possibilidade de uma modernização alternativa do teatro brasileiro, processo que ainda resultaria em muitos outros desdobramentos, como o ciclo de dramaturgias nacionais do Arena e os rachas internos que resultaram na formação dos Centros Populares de Cultura (cpcs). Um caminho de possibilidades infinitas se abriu, possibilidades estas nunca realizadas devido ao bloqueio violento e infame inaugurado pelo golpe de 1964.

 

[1] Iná Camargo Costa, A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

[2] Francisco Oliveira, Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 55.

[3] Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo em 2016.

[4] Paula Autran, O pensamento dramatúrgico de Augusto Boal: as lições de dramaturgia da Escola de Arte Dramática (EAD). São Paulo: Desconsertos, 2019. A dissertação de mestrado Teoria e prática do seminário de dramaturgia do Teatro de Arena foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo em 2012.

[5] Sara Mello Neiva, O Teatro Paulista do Estudante nas origens do nacional popular, op. cit., p. 132.

[6] Id. Ibid.

[7] Id. Ibid.

[8] Paula Autran, O pensamento dramatúrgico de Augusto Boal: as lições de dramaturgia da Escola de Arte Dramática (EAD), op. cit., p. 32.

[9] Id. Ibid., p. 34.

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Gustavo Assano é graduado em letras e jornalismo, mestre em filosofia e, atualmente, é doutorando no programa de Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (fflch-usp). Pesquisa há dez anos o teatro de São Paulo, no qual trabalhou como dramaturgista com diversos grupos de teatro.

 No banner: imagens da montagem de estreia de Eles não usam black-tie de 1958.